quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

"Eppur si muove"

Cena 1: lá vem a modelo. Linda. Com aquele andar esquisito, mas gostoso de ver. E as caras e bocas. Na cabeça, um treco estranho que parece uma vassoura. Aquilo que deveria ser uma blusa é um pano enrolado. Que engraçado, no lugar da saia (ou seria um short?), uma tela de galinheiro. Nos pés uma bota cor-de-rosa com salto de 15 centímetros... a mulher parece um ET!
- Mas quem é que vai usar essa merda?
Cena 2: com toda paciência, sento-me para assistir a um dos filmes de Glauber Rocha. Bastam cinco minutos para o desconforto aparecer. Imagens bizarras, interpretações insólitas, texto difícil de entender, montagem inusitada....
- Mas quem é que vai assistir a essa merda?
Cena 3: boto um CD pra escutar: jazz moderno, cheio de acordes esquisitos, com ritmo estranho, fraseados fora de costume.
- Mas quem é que vai ler essa merda?
Cena 4: compro uma dessas revistas alternativas: texto engraçado, diagramação não usual.
- Mas quem é que vai ler essa merda?

É sempre assim: desde que o mundo é mundo tem alguém fazendo uma coisa doida, que a gente não entende, não gosta, não compreende.
- Isso é coisa de loucos!
Pois meu pai recebeu do pessoal da Endeavor, uma ONG voltada ao empreendorismo criativo, uma "Ode aos loucos":

"Também chamados de desajustados, rebeldes e criadores de caso. Aqueles que vêem coisas de uma forma diferente, que não gostam de muitas regras e que não respeitam o status quo. Você pode elogiá-los, discordar ou duvidar deles, endeusá-los ou difamá-los. A única coisa que não pode fazer é ignorá-los, pois eles provocam mudanças. Eles inventam. Imaginam. Resolvem. Exploram. Criam e inspiram. Eles obrigaram a raça humana a evoluir. Talvez eles tenham que ser loucos. De outra forma, como alguém poderia enxergar uma obra de arte em uma tela vazia? Ou sentar em silêncio e imaginar uma música que nunca foi escrita? Ou olhar a lua e imaginar uma estação espacial? Alguns podem vê-los como loucos, nós os chamamos de empreendedores. Pois as pessoas que são loucas o suficiente para pensar que podem mudar o mundo, são justamente aquelas que o fazem."

Na mosca!
Foram doidos assim que, ao não se conformarem com o jeito como as coisas são, ao não concordarem com as regras conforme elas são, ao não aceitarem fazer parte da rotina, inventaram coisas que mudaram as nossas vidas.
A moda é muito louca? Muito esquisita?
A música é ininteligível?
O filme é chatíssimo?
A revista é doida?
Sim, por sorte.
Muito dessa loucura radical será traduzida em regras, produtos, propostas e conceitos aceitáveis aos "normais". A moda que surge da liberdade de criação do artista vai influenciar a produção industrial e criar uma tendência que pode inovar a forma de a gente se vestir. A tela de galinheiro, engraçada, a princípio, pode virar uma trama que será a moda da estação. A montagem nervosa ou o enquadramento maluco daquele filme transformam-se num recurso para garantir mais dramaticidade, agilidade ou adrenalina aos filmes comercias. A diagramação ininteligível aponta um estilo ou caminho que vai influenciar as publicações convencionais.
É assim com as manifestações artísticas. Aquelas "merdas" traduzidas, adaptadas, multiplicadas serão muito normais no futuro. E ninguém vai se lembrar que um dia foram merdas...
São eles, os loucos, os radicais, os que defendem seus pontos de vista inovadores que vão gerar tendências, que vão apontar os caminhos para a inovação. E na política, na economia, no mundo dos negócios... é a mesma coisa!
As pessoas deveriam entender que é assim a dinâmica da interação entre os homens. Talvez isso as ajudassem a conviver em paz com as idéias "absurdas" com as quais cruzam pelo caminho. Talvez sejam absurdas hoje, mas amanhã...
No entanto, a mediocridade fala mais alto.
A mediocridade processa idéias como um triturador, misturando tudo em uma massa uniforme, eliminando nuanças, detalhes, sabores, cores, transformando tudo em uma coisa só, na maioria das vezes, cinza. E sempre com o respaldo de um líder, de uma tese, de uma idéia.
É assim que o Corão é utilizado como desculpa para o terrorismo sangrento; que o capitalismo é transformado num modelo de exploração, culminando numa proposta de globalização mal entendida, mal gerenciada, mal-explicada; que o consumismo é desviado de seus valores iniciais, passando a servir como desculpa para regimes sanguinários e restritivos; que as religiões servem de base para espertalhões que exploram o povo com programas de TV e sermões vazios; que a reengenharia é transformada em um processo para mandar gente embora; que o amor por um time de futebol vira desculpa para agressões e violência.
O fato é um só: estamos rodeados de inquisidores. Não no sentido de perguntadores, mas da Inquisição mesmo. O mesmo tipo de gente dogmática, que se junta em grupos e assume uma coragem, um poder, um credo, que dificilmente conseguiria sustentar sozinha. Gente como aquela que só não condenou Galileu ao fogo porque ele concordou em negar que sua tese de que a Terra giraria em torno do Sol. Por sorte, Galileu era um daqueles loucos que a gente encontra por aí, que não aceitam a mediocridade, que, mesmo ameaçados, sussurram: "Eppur si muove".

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